“Chama atenção a quantidade de requerimentos de pesquisa e de licenciamentos no estado de Roraima, em especial, na terra indígena dos Yanomamis. Esse dado confirma que as comunidades inseridas nesse território estão sob pressão, e é urgente que o Estado brasileiro se posicione, com respeito ao cumprimento da legislação em vigor”. As afirmações constam no texto que compõe o livro “Mineração em terras indígenas – desenvolvimento para quem?”, publicada em 2022 pela Associação Baiana de Geólogos, Sindicato dos Geólogos no Estado de São Paulo – Sigesp e Federação Brasileira de Geólogos – Febrageo, com patrocínio do Confea e da Mútua-SP. Segundo uma das autoras e coordenadora do livro, Suzi H. Theodoro, essa constatação ganha ainda mais relevo, após as denúncias divulgadas pela imprensa no final de janeiro, relacionadas à crise humanitária sofrida por indígenas da terra indígena dos Yanomamis, que ocupa parte dos estados de Roraima e Amazonas.
O diretor da Febrageo Fábio Reis destaca que “a realidade de cada comunidade indígena é muito diferente e o Estado brasileiro precisa ouvir os interesses e anseios de cada comunidade, auxiliando-as na definição do que querem para suas terras, seja atuando na fiscalização contra invasões, seja no apoio ao desenvolvimento de atividades sustentáveis. O Serviço Geológico do Brasil e outros órgãos da Administração Pública podem auxiliar neste processo, especialmente para cada comunidade conhecer melhor seu território, sua geodiversidade e sua biodiversidade”.
O capítulo “Dimensionando os conflitos minerários em terras indígenas” é de autoria das geólogas Ana Paula Justo, Caroline Siqueira Gomide, Luciana Gonçalves Tibiriçá, Suzi Huff Theodoro e de Luiza Coimbra de Oliveira (urbanista). O texto descreve que o estado de Roraima possui a maior parte dos processos minerários do país (699), seguido por Pará (580) e Amazonas (353). Dados para essa análise foram obtidos no Sistema de Informações Geográficas da Mineração (Sigmine), da Agência Nacional de Mineração (ANM), responsável pelo registro dos processos minerários do país.
Os dados obtidos pelas pesquisadoras levaram em conta os requerimentos minerários feitos entre 1967 e fevereiro de 2022. “É importante destacar que no art. nº 231 da Constituição Federal ficou estabelecido que a manutenção da organização social, dos costumes, das línguas, das crenças e das tradições são direitos originários e cabe à União demarcar, proteger e fazer respeitar todos esses direitos. Ainda que no texto constitucional não esteja expressa a proibição da atividade mineral em terras indígenas, ele estabelece exigências, entre as quais se destacam a necessidade de regulamentação desse artigo, por meio de lei complementar (§ 6º), bem como a necessidade de consulta (oitivas junto às comunidades afetadas), além de outros parâmetros, como a autorização do Congresso Nacional”, ressalta Suzi H. Theodoro. Os dados apresentados no livro e reportagens da mídia, divulgadas recentemente, permitem supor que essa vedação estabelecida na Constituição não vinha sendo cumprida nos últimos anos.
Metodologia
O levantamento dos dados do Sigmine abrange aspectos gerais dos processos de direitos minerários ativos, apresentados à ANM como: o título do requerente, o minério, a localidade, o número e a movimentação do processo. O grupo de autoras promoveu, paralelamente, a coleta de informações geográficas quanto aos polígonos referentes às terras indígenas, fornecidas pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
Foi utilizada ainda a base cartográfica digital do Brasil, disponibilizada pelo IBGE. Ela contempla as divisões por regiões/estados e elementos como base hidrográfica, áreas de proteção ambiental, limites e sedes municipais, que auxiliaram na localização das áreas estudadas. Estas informações foram integradas por programas e resultaram na descrição de dois arquivos em formato “shapefile”, por polígonos dos processos minerários em interação e sobrepostos nas terras indígenas e nas áreas desses polígonos completamente contidas nas terras indígenas. Os dados foram em seguida tratados por técnicas de aferição geoespaciais.
“Para fazer um diagnóstico dos principais embates, o texto do livro aponta que foi necessário identificar quantos são os processos minerais ativos, onde se localizam, quais as principais substâncias minerais requeridas, qual o tipo de requerente (empresas, cooperativas ou pessoas físicas) e as fases de tramitação dos processos na ANM”, ressalta Suzi. As pesquisadoras constataram que “cerca de 4% da extensão territorial destinada às terras indígenas encontram-se em situação de inconstitucionalidade, com processos minerários ativos a elas sobrepostos”.
De forma mais técnica, a presença mineral na região é constatada pelos pesquisadores. “Ainda que a legislação em vigor não permita a existência de requerimentos minerários sobre as terras indígenas, eles são recorrentes em todas as regiões do Brasil. Talvez os casos que mais se destacam ocorram no estado de Roraima e, em especial, nas terras dos Yanomamis e na Raposa Serra do Sol. O caso mais emblemático é da terra dos Yanomamis, no extremo norte do Brasil, que, não por acaso, está assentada em uma área de enorme geodiversidade, caracterizada pela presença de blocos crustais, dominados por terrenos tipo granito-greenstone, limitados por zonas de sutura arqueanas, interpretadas como cinturões colisionais que comportam uma ampla possibilidade de ocorrência minerais de interesse econômico”. Porém, destacam as autoras, é necessário que se faça um estudo detalhado da geodiversidade dessas áreas como forma de implementar medidas e ações que sejam do interesse dos povos indígenas e também do Brasil. “Afinal, essa é uma potencialidade que merece uma discussão mais ampla da sociedade indígena e não indígena, porque representa a soberania do país”, pondera a pesquisadora Suzi H. Theodoro.
Outras referências
Especificamente em relação à situação da mineração ilegal e predatória em terras Yanomamis, a obra – ricamente ilustrada com imagens originais em torno de dados oficiais – aponta a existência da atividade em terras Yanomamis desde o período pré-Constituinte. Período em que, sob a revisão do Código Mineral, de 1967, “a mineração em terras indígenas era permitida, desde que houvesse autorização da Funai”. Havia garimpos ativos em terras dos Yanomamis, Kayapós Mundurukus e Caipis.
“Os bens minerais presentes em terras indígenas já estavam sendo predados pela mineração ilegal (explorados pela porta dos fundos), em associação com a extração de madeira e a grilagem de terras. Isso mostra que é preciso separar a mineração industrial e empresarial da atividade de garimpo ilegal. Enquanto a primeira tem um tempo médio de maturação (pesquisa, licenças e desenvolvimento da planta de exploração) de aproximadamente 10 anos, o segundo não segue regras normativas e técnicas e avança sem licença sobre os territórios”, lembra o geólogo Elmer Prata Salomão, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Geologia e da Coordenação Nacional de Geólogos – Conage à época da Constituinte e atual conselheiro da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa Mineral e Mineração (ABPM).
Já no artigo “Aliança em Defesa dos Territórios: Kayapó, Munduruku e Yanomami", Ana Paula Justo e Suzi Huff Theodoro descrevem o pacto firmado entre esses povos contra as ameaças à integridade de suas terras, durante o acampamento Luta pela Vida, realizado em Brasília, em agosto de 2021. Os três territórios são considerados “os mais impactados pela exploração ilegal de ouro”.
O artigo assinala que a demarcação da Terra Indígena Yanomami ocorreu em 1992, “mas, atualmente, corre o risco de desaparecer, em função das frequentes e graves violências que têm sido impostas às diversas comunidades que vivem na TI”. Citando casos anteriores de violência, o texto aponta alguns aspectos denunciados mais recentemente, como a contaminação por mercúrio, a violência sexual, o tráfico de drogas, insegurança alimentar e nutricional. “O terror faz parte da produção do ouro ou cassiterita, na Terra Indígena Yanomami (TIY). Mas, nesse momento, há grande esperança por parte das lideranças indígenas, profissionais de saúde, antropólogos e antropólogas, que a reprodução de violência cesse na TIY”, vislumbra a antropóloga Elaine Moreira em “A fumaça e o cotidiano”, presente no capitulo cinco do livro editado pela Febrageo.
“A diretoria da Febrageo agradece o excelente trabalho feito pelo Confea, Creas e Mútua em seus programas de patrocínio, possibilitando que temas fundamentais para a sociedade brasileira sejam discutidos em eventos e publicações. Somente nos eventos e publicações realizados pelas entidades da Geologia em 2022, mais de 150 mil profissionais, professores, estudantes, empresários e público geral participaram. Considerando só as publicações de livros, mais de 30 mil exemplares impressos dos livros foram distribuídos por todas as regiões do país, além dos outros milhares de acessos das versões digitais, demonstrando que este programa de apoio às entidades é umas das ações mais relevantes do Sistema Confea/Crea e Mútua”, considera Fábio Reis.
Fonte: Confea